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Algumas famílias moravam na margem esquerda da via em obras da foto acima (Foto: Luna Markman/G1) |
Moradores que adoeceram seriamente após serem obrigados a deixar suas
casas, famílias desesperadas diante de um iminente despejo,
indenizações com valor baixo e pagamentos pendentes. Esses são alguns
dos problemas enfrentados por quem foi afetado pelas obras para a Copa
do Mundo 2014 na Grande Recife, segundo entidades que acompanham os
processos de desapropriações ouvidas pelo G1.
A relatora especial das Nações Unidas para o Direito à Moradia, Raquel
Rolnik, visitou áreas de desapropriação e afirma que o Estado está
"produzindo sem-tetos". A visita, ocorrida no dia 29 de novembro, fez
parte da programação do seminário "Legados e Relegados da Copa do
Mundo"."Parece-me que o marco internacional que define como se dão as
remoções forçadas, respeitando o direito à moradia adequada, não está
sendo observado em várias dimensões, como a falta de projetos
alternativos para minimizar remoções", diz a relatora.
"Também
existe uma regra de ouro que diz que, quando acontece uma remoção, a
situação da moradia da pessoa que vivia ali nunca pode piorar. Uma
opção é o reassentamento ou a indenização que permita que ela compre um
lugar no mínimo igual ao que tinha, e o que está acontecendo aqui é que
estão produzindo mais famílias sem-teto", diz Rolnik.
Os
moradores cujas casas são alvo de desapropriação – perda da posse em
troca de uma indenização – para dar lugar a grandes obras de mobilidade
para a Copa reclamam ainda que, quase um ano após assinarem os acordos,
ainda não receberam o dinheiro. Eles já deixaram as casas onde moravam
e agora pagam aluguel. Parte das famílias recorreu à Justiça.
No
bairro do Coque, Centro do Recife, famílias estão sendo removidas para
a pavimentação do Canal Ibiporã, que dará novo acesso ao terminal de
ônibus e estação de metrô Joana Bezerra. A obra não está diretamente
ligada à Copa, mas as indenizações de até R$ 4 mil chocaram a relatora
da ONU. Alguns moradores estão pagando R$ 200 de aluguel para morar em
palafitas ao longo do Rio Capibaribe.
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Além de casas, pontos comerciais e igrejas foram
desapropriados em PE (Foto: Luna Markman/ G1) |
No Loteamento São Francisco, no bairro do Timbi, em Camaragibe, Região
Metropolitana do Recife, famílias estão sendo desapropriadas para obras
do Corredor Leste-Oeste, Ramal da Copa, TI Camaragibe e Avenida Belmino
Correia.
O mecânico desempregado Nelson Gregório mora com os três filhos em
um terreno de 300 metros quadrados. "Eu tive até um AVC [acidente
vascular cerebral] quando recebi a notícia. Não aceitamos o valor de R$
289 mil e entramos na Justiça. Não quero atrapalhar a obra, mas estão
expulsando a gente com quase nada no bolso", reclama.
A relatora
também se encontrou com representantes do governo estadual e da
Prefeitura do Recife. A visita não foi oficial, mas a relatora garante
que vai produzir uma carta-alegação para chamar a atenção do governo
federal sobre o problema.
Imóveis grandes, indenizações pequenas
Em outra área entre Camaragibe e Recife, imóveis e terrenos de até 800
metros quadrados foram desapropriados para a construção do Ramal da
Copa e do Terminal Cosme e Damião. Os primeiros valores oferecidos pelo
governo estadual foram negados pela maioria. Sem acordo, os moradores
tiveram que deixar os locais à força, e a negociação foi parar na
Justiça.
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Pedreiro comprou telhas para construir nova casa,
mas diz que valor prometido não foi pago e que
está perdendo materiais (Foto: Luna Markman/G1) |
O pedreiro Reginaldo Zeferino afirma que até aceitou a oferta inicial
de R$ 160 mil para o terreno de 800 metros quadrados, mas não entende o
motivo de o valor pago ter sido menor, R$ 115 mil. "O roubo começou por
aí, pois eles não cumpriram o acordo. Logo depois da desapropriação, eu
comprei até material, como areia, telha, madeira, para construir uma
nova casa em outro canto, mas está tudo perdido por causa dessa demora
[em receber o dinheiro]", afirma.
A
dona de casa Lucicleide Mari morava com três filhos e o neto em um
terreno de 650 metros quadrados que a mãe dela herdou do marido. Uma
das filhas dela, Kelly dos Santos, já tinha investido R$ 8 mil na
construção de uma nova casa no mesmo local. Só faltava colocar o
telhado quando a notícia da desapropriação chegou.
"Eles nem
negociaram direito. Disseram que a gente não devia recorrer, porque ia
perder mesmo, meio que coagindo a gente a não procurar nossos
direitos", denunciou Kelly. "Eles pagaram somente R$ 153 mil, e vamos
ter que dividir esse dinheiro entre nove pessoas, não vai sobrar nada.
Nós não pedimos para sair e agora estou pagando R$ 350 de aluguel, o
que é muito caro para quem sobrevive apenas com um salário mínimo", diz.
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Josafá segura a cópia de comprovante de depósito
judicial pelo seu terreno (Foto: Luna Markman/G1) |
O comerciante Josafá dos Santos guarda todos os documentos referentes
ao problema. Um deles é o comprovante do depósito de R$ 164.375,60,
feito pela Secretaria das Cidades, referente ao terreno de 600 metros
quadrados que ele tinha. Outro é um protocolo que mostra a última
visita feita à Defensoria Pública do Estado, em 5 de junho de 2013,
para se informar sobre o andamento do processo. "Eles disseram para a
gente ficar aguardando em casa, e acho que botaram uma pedra em cima do
assunto", criticou.
Justiça
A
defensora pública Daniele Monteiro afirma que recebeu cerca de 300
casos desse tipo. "Quem ainda permanece sem receber indenizações são
pessoas que estão com pendências judiciais no que diz respeito à prova
da propriedade e regularidade fiscal, como débito de IPTU, Imposto de
Transmissão e Imposto Causa-Morte", diz.Segundo ela, foi preciso abrir
processos paralelos na Vara Cível para regularizar primeiro os títulos
de propriedade. "Estamos esbarrando em questões legais para o cartório
dar ao cidadão esse título. A Defensoria Pública está tentando ao
máximo. Infelizmente, é o tipo de causa que não tem previsão de
liminar, a legislação é contrária ao cidadão e a favor do estado, é bem
arcaica", disse.
O juiz Djalma Andrelino, da 4° Vara da Fazenda
Pública, explica que o poder público pode desapropriar qualquer imóvel
visando o interesse público. "O depósito tem que ser feito
imediatamente, mas a Justiça só libera quando tem prova segura da
propriedade do imóvel, até para proteger o interesse de terceiros", diz.
O
Comitê Popular da Copa em Pernambuco, formado por um conjunto de
organizações da sociedade civil, afirma que cerca de duas mil famílias
no Recife, em Camaragibe e em São Lourenço da Mata foram atingidas por
obras visando o Mundial.
A entidade critica a forma como o
governo estadual está lidando com a situação. "A estratégia é a do
contato individualizado e diálogo em tom de ameaça, sem negociação em
termos de valores, quando na verdade deveria haver audiência pública.
As famílias são de baixa renda, sem acesso à Justiça, tornando-as ainda
mais frágeis", afirma Rudrigo Souza e Silva, representante no Comitê do
Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec-PE).
Para
Rudrigo, o governo tem aproveitado o fato de a maioria das famílias não
ter a posse formal dos imóveis para subvalorizar as indenizações.
"Tivemos relatos de que quatro pessoas já faleceram nesse processo por
depressão, estresse, problemas cardíacos. E nós criticamos não apenas
as indenizações, pois acreditamos que poderia ter sido feito um plano
habitacional para essas famílias serem relocadas para áreas próximas,
porque tempo houve. Além disso, a gente também critica que as
intervenções mudam a cada momento e não são apresentadas ao Conselho
Estadual das Cidades para serem discutidas. Achamos os projetos
urbanisticamente frágeis e questionamos o interesse social deles",
apontou.
O G1 conseguiu contato com duas famílias dos quatro
casos de mortes citados por Rudrigo Souza. "Quando começou a notícia da
desapropriação, ela [a mãe] começou a ficar preocupada com o paradeiro
da gente. Ficou sem dormir direito, comer bem. Quando viu as coisas
acontecerem mesmo, foi a gota d´água. Ainda não analisei se vamos
entrar com uma ação contra o Estado", disse Analice Ferreira, filha de
Severina Maria de Lima, de 70 anos, que morreu em novembro de 2012 de
infarto. Ela mora no Timbi, em Camaragibe, e ainda não sabe a data
exata do despejo.
Já Maria Ferreira de Araújo tinha 85 anos
quando morreu, em março deste ano, por causa de complicações
decorrentes de uma pneumonia. "Minha mãe era uma senhora e já estava
doente, mas ela ficou muito deprimida quando soube de tudo. Ela ficou
muito preocupada com a gente, porque a indenização não ia cobrir a
compra de outro lugar, e a situação só foi piorando. Agora, só falta a
minha casa e a do vizinho serem desapropriadas. O terreno é grande, com
quatro casas, onde moram meus irmãos, e com a indenização partilhada só
sobra R$ 3 mil para mim, que não dá para nada. Eu não sei o que vou
fazer", disse a filha dela, Maria Zuleide Ferreira.
O terceiro
caso de morte detalhado pelo Comitê Popular da Copa em Pernambuco diz
respeito a um homem que foi vítima de um acidente vascular cerebral.
Ele teria ficado muito estressado com a notícia da desapropriação. Em
uma quinta-feira, houve uma discussão sobre o valor do imóvel e ele
ficou muito nervoso, morrendo no domingo seguinte.
Resposta do governo
A secretária executiva estadual de
Desapropriações, Analúcia Cabral, afirma que 441 imóveis estão sendo
desapropriados nas obras da Copa. O órgão afirma que a conta foi feita
por imóveis residenciais e mistos (residencial e comercial)
desapropriados, e não por famílias. Também entraram na contagem as
terras nuas (sem edificações) e imóveis institucionais, como igrejas.
Cabral
assegura que uma série de ações foram realizadas para orientar e
esclarecer os afetados sobre as desapropriações. "Uma equipe
multidisciplinar, formada por engenheiros, arquitetos, assistentes
sociais e advogados, vem conduzindo o processo de desapropriação e
disponibilizando, constantemente, um canal de diálogo com a comunidade.
Nas audiências públicas, os moradores e comerciantes tiveram a
oportunidade de assistir as apresentações dos projetos da Copa e obter
informações completas do processo de desapropriação, além de esclarecer
dúvidas. A presença da comunidade de Camaragibe, Recife e Olinda
ocorreu em, pelo menos, seis audiências públicas que aconteceram em
escolas estaduais", disse.
Sobre a reclamação referente ao valor
das indenizações, a secretária informou que os laudos são baseados em
preços de mercado e definidos conforme a NBR 14.653, regulamentação da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). "A ausência de
regularidade na documentação dos imóveis faz com que a desapropriação
seja judicial, sendo ajuizadas ações com valores médios de mercado",
diz.
A secretária acrescentou que o valor das indenizações da
maioria das desapropriações é superior aos valores de imóveis do
Programa Minha Casa Minha Vida, "sendo mais vantajoso para as famílias
receber as indenizações pagas pelo Estado".
Ela diz que o
Projeto de Lei Ordinária nº 1743/2013, do Poder Executivo, tramita na
Assembleia Legislativa de Pernambuco e vai possibilitar o pagamento do
auxílio moradia e posterior reassentamento para os expropriados do
Ramal Cidade da Copa e da Navegabilidade do Rio Capibaribe. A redação
final do texto foi aprovada no último dia 4 de dezembro e segue para
sanção ou veto governamental. O prazo é de 15 dias.
G1